RECORTES DE COLEÇÕES 2
12 artistas | 27 obras | 1914 a 1970

Exposição e Vendas nº 58
17 de outubro a 17 de dezembro de 2022


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Recortes de Coleções 2

Desde sempre a opção espontânea pela qualidade em detrimento da quantidade norteou a seleção das obras que temporariamente são apresentadas na galeria. E, assim consegui, após árduas negociações, reunir um significativo conjunto de 27 obras, que segundo os museólogos italianos designariam como 27 "capo-lavoro", aquelas sem possibilidade de reposição, aquelas relativamente insubstituíveis.

Justamente é o caso do excepcional Malfatti de 1917 "Retrato de Zé", tema emblemático à la "Boba", ambos egressos originais do expressionismo germânico que a artista havia incorporado durante seu profícuo estágio europeu.

Aliás, Malfatti me é pessoalmente uma referência afetiva já que mantive estreito relacionamento com a família em 1978 através de sua sobrinha Beth, com quem produzi a exposição inaugural associado à Galeria Paulo FIgueiredo com cerca de 35 obras.

Noutra oportunidade, ao exibir no Studio José Duarte de Aguiar precioso conjunto de obras da artista com as cinco herdeiras da família Malfatti, tivemos a honra de receber a visita da Sra. Maria Balderrama, diretora do Departamento de Arte Latinoamericana do Metropolitan Museum de Nova York, que apaixonada principalmente pelos retratos de Malfatti, imediatamente recomendou-me à curadora Sra. Geraldine P. Biller do Milwaukee Art Museum para a exposição "Latin American Women Artists 1915-1995".

Muito honrosamente fui designado como curador não somente da participação de Malfatti como também da seleção das obras de Tarsila e Lygia Clark numa memorável itinerância pelos respectivos museus de Phoenix, Denver e Washington.

Merecem destaque também os excelentes Gomide "Cenário" de 1922, portanto do ano da Semana do Teatro Municipal, e o "Porto" de 1923, ambos peças de coleção.

No percurso histórico da exposição devemos nos deter também em algumas outras preciosidades como o Rego Monteiro, "O menino e a tartaruga" de Paris 1924, o John Graz de 1932, o Di Cavalcanti "Mulher da Noite" déc. 1930, além das absolutas raridades de Tarsila com seu "Bicho Antropofágico" de 1928, a pintura "Vaca Amarela" de 1940 e o decididamente emocionante mármore "Anjo" de 1949, obra de categoria incomparável.

Quanto aos Portinari selecionados, dois deles ostentam seu tema mais popular da fase "Guerra e Paz", "Mulher Chorando" e "Soldado Abatido", ambos com sólidas passagens por exposições significativas, algumas inclusive internacionais e fartamente documentados em edições sobre o artista. Saliente-se sobre o terceiro tema a "Colheita de Bananas", que além de diversas passagens por exposições de Portinari, esteve presente na importantíssima individual do artista na Galeria Wildenstein em Nova York em 1959 e recentemente numa mostra do MAM-RJ.

Das obras mais recentes cronologicamente destacam-se o belo Bonadei de 1963 de dimensões avantajadas para sua produção e os dois ótimos Bandeira sendo o primeiro um tema mais intimista de 1958 e o segundo uma magnífica pintura, a "Composição Cinza" de 1965, de larga superfície, e complementando o conjunto um excelente Iberê Camargo de 1962 "Estruturas em Tensão" também de grandes dimensões e de grande impacto.

Finalizando, e muito lisongeadamente, apresento uma mini-retrospectiva de Brecheret, artista que marcou enormemente com sua presença minha trajetória profissional, somando oito obras desde 1914, 1925, 1930, 1940, 1945, 1947 e 1948.

Indubitavelmente esse núcleo de Brecheret é um acontecimento de enorme significado para o próprio mercado de arte como um todo e do qual faço parte honrosamente, realizando várias exposições deste grande escultor e importantes obras cedidas para coleções particulares de relevância, inclusive o Museu Malba de Buenos Aires.

Sejam todos muito bem-vindos!

RICARDO CAMARGO


BRECHERET
E O CENTENÁRIO DA SEMANA DE 22

No contexto dos festejos do centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, apresenta-se um grupo seleto de oito obras do escultor Victor Brecheret (1894-1955), coletadas em diferentes coleções - resultantes do processo criterioso e competente de seleção promovido por Ricardo Camargo.

Um desenho e sete esculturas pontuam momentos altos de criatividade de Brecheret. Do início de sua brilhante carreira, datado de Roma, um impactante desenho de Nú Feminino em tamanho natural. Da década de 1920, imersos na atmosfera do Art Deco, Banhista e o pequeno Cupido reclinado. Testemunha da arte do final dos anos 1930, Máscara de Jovem de traços delicados. Na década seguinte, dedicado totalmente aos trabalhos do Monumento às Bandeiras, ele busca imagens de figuras e artefatos dos povos indígenas, atento às fotorreportagens de Jean Manzón, publicadas na revista "O Cruzeiro" e mais tarde, na década de 1950, às curtas metragens, transmitidas pela TV Tupi, de Alceu Maynard de Araújo.

Cabeça de Índia é um marco inicial desse período bem como a coleta e incisões sobre pedras roladas pela erosão do mar, onde ele vê imagens que, completa e detalha, executando sulcos, como em Índia Agachada/Acropi. Em Mãe Índia, figura feminina tratada em suas formas essenciais inspiradas na arte rupestre. Da fase final de sua produção artística, elabora a terracota; São Francisco com Pombinhas tema de sua predileção.

O conjunto de oito obras constitui o núcleo VIctor Brecheret na exposição coletiva traduzindo cada momento de grande e original criatividade e de alta qualidade técnica deste genial artista.

Daisy Peccinini
Professora, Historiadora e Crítica de Arte
São Paulo, 09 de Agosto de 2022


No desenho do Nu Feminino é revelado o grande conhecimento de Brecheret da fisiologia do corpo humano e de como as tensões podem marcar e por em ressalto sua anatomia.
O tamanho natural da figura (1,70m) revela uma concepção monumental, sempre presente em sua obra. A complexidade da composição é marcada pela apresentação dorsal e as diferentes posturas dos braços e pernas.

Estabelece evidentes contrapontos, como do braço direito flexionado em contraponto com a perna esquerda também flexionada. Trata-se de um desenho refinado, no qual o artista trabalha com muita destreza em crayon. Com maestria estabelece as luzes e as sombras como que direcionando a luz vinda do alto da direita para esquerda. Esse desenho é mais uma comprovação do que ficou estabelecido na história da arte, de que todo escultor é um excelente desenhista, porque ao desenhar direciona os traços, como se a figura tivesse três dimensões, dando clareza e plasticidade à imagem.

DP


A escultura mostra a figura de uma jovem sentada sobre a perna dobrada, tendo a outra flexionada junto ao peito, sobre a qual descansa o braço. Com o torso ligeiramente encurvado e a cabeça inclinada para a direita, tem seus cabelos direcionados para trás como sob impacto da brisa marinha. Pela disposição dos elementos da figura, o artista imprime um ritmo suave e de extrema graciosidade na composição.

Convém destacar que se trata de uma rara peça realizada em talha direta. Brecheret participava do imenso grupo de escultores que produziam pela agregação do material, modelando as formas, como Rodin e; diferente do outro grande grupo que desbastam a matéria, talhando-a diretamente para produzir a obra, sendo o grande exemplo Michelangelo. Esta escultura é similar à Baigneuse/Banhista, que participou na primeira exposição individual de Brecheret, em São Paulo, em 1926, no espaço de uma oficina adaptada à rua 7 de abril.

DP


Nesta máscara-retrato, o artista plasmou o rosto alongado de uma jovem mulher. O rosto sereno e delicado, com os olhos grandes, testa ampla e as sobrancelhas em um suave arco. Seu nariz é clássico e a boca pequena tem os lábios bem delineados. A pele é lisa, sem vincos causados por sentimentos de dor ou de alegria; lembrando rostos do período severo da arte grega, na simplicidade dos volumes lisos, sem as marcas expressivas das emoções. Esse retrato emana uma nobre serenidade, um dos exemplos da notável qualidade de retratista de Brecheret.

DP


São Francisco é um dos temas caros ao artista, que várias vezes o retoma. Nesta composição, Brecheret projeta seu subjetivismo poético e místico, na atmosfera criada pela figura do santo, tendo pequenas pombas pousadas nos ombros, nas mãos e aos pés descalços. A forma da pequena ave sempre despertou interesse por parte do escultor que a representou por várias vezes como tema de sua escultura. Convém destacar que nesta peça o artista reúne dois temas prediletos.

Nessa terracota, a figura do santo se ergue como uma coluna, de forma cilíndrica. Na parte superior desse volume essencial, destaca-se o longo pescoço, também cilíndrico, finalizado pela cabeça tonsurada. Grossas e barba cerrada emolduram os traços do rosto sereno, mas sensibilizado por incisões lineares paralelas, que estão presentes na túnica. Os braços dobrados e as mãos sobrepostas, onde pousa um casal de pombinhas, dão uma atmosfera meditativa amorosa do santo que exalta a natureza perfeita da criação divina.

DP


Essa pequena cabeça é um dos primeiros resultados dos estudos da iconografia indígena que Brecheret faz no processo da realização do Monumento às Bandeiras. Pode-se pensar que se trata de uma criança indígena pela delicadeza dos traços.

O rosto arredondado destaca-se pela franja delicada, os olhos amendoados, o pequeno nariz e uma boca de pureza infantil. De pequenas dimensões, essa peça tem um grande valor histórico artístico por ser marco inicial da copiosa produção de arte indígena de Brecheret.

DP


Esta obra faz parte de um conjunto de seis pedras que Brecheret coletou ao caminhar numa praia selvagem, paraíso do nudismo, a Praia das Vacas, no final da década de 1940. Pode-se afirmar que ele é pioneiro da Land Art, manifestação dos anos 1960. Na exposição individual de 1948, na Galeria DOmus, o artista escreve a respeito da Índia Acropi:

"(...) Ande Brecheret, ande mais cem metros e encontrará a pedra no 38. Verá também que ela é linda, de formas arredondadas por rolar milhares de anos no mar (...)".

A pedra de proporções razoáveis é disposta na vertical. Possui o cume arredondado cujo volume constitui a cabeça e o rosto tatuado da índia, definidos por incisões. Na sequência, ele marca os braços e mãos juntas apoiadas sobre os joelhos dobrados, finalizando a figura, com os sulcos representando pernas e pés e outras incisões, como riscos, quadrados e retângulos, evocando pinturas corporais que ocupam espaços da frente e do verso da rocha granítica.

Na sua peculiar forma de se expressar, misturando diferentes línguas; italiano, português e francês, Brecheret deu o nome de Índia Accroupi, que significa "agachada", em francês, e acabou por ser entendido como o nome de alguma tribo indígena, sendo publicado no catálogo da forma que havia sido compreendido: "Acropi".

DP


Diário de S. Paulo - 21/11/1948
Acervo Victor Brecheret Filho


Guilherme de Almeida
Da Academia Brasileira de Letras

AS "PEDRAS" DE BRECHERET

Isso sôa como se disse: os mobiles de Calder. Sôa igual e é igual. Mas de uma igualdade contrária: como o direito e o avesso de um tecido, que são opostos, embora próximos; diferentes, embora idênticos. O tecido é o mesmo: os lados é que não são.

Calder procura criar objetos fora da natureza; Brecheret procura criar natureza dentro de objetos.

Um é direito; outro, o avesso; mas não sei qual deles é isto ou aquilo.

Exposição Brecheret, na Galeria Domus.

Entre granitos religiosos, bronzes mitológicos, terracotas regionais, aparecem as pedras... pedras o que? - Se precisassem de um adjetivo, eu lhes daria, convictamente, este: sábias.

É um adjetivo que vem da China multi-milenar: essa que guarda o pedestal - que falta às três colunas-mestras - Progresso, Cultura, Civilização - sobre os quais o Ocidente assentou tudo o que sabe, tudo o que quer. São três colunas no ar: não têm a base - Sabedoria - que lá ficou nas terras onde nasce a luz. Aí, os lapidários, talhadores de pedra-duras (ágata, cristal-de-rocha, onix, jade...) não abrem arbitrariamente na matéria preciosa a imagem resolvida. Estudam, primeiro, durante dias, meses, o espírito, a intenção do pedaço de sílico ou calcáreo que lhes deu a Mãe Terra. Partem do princípio de que todas essas pedras vieram ao mundo com um sentido, uma mensagem; e que é preciso descobrir, primeiro, esse destino, para depois acentuar-lhes as formas. É, primeiro, uma descoberta; depois, simples trabalho de revelação. Assim tiram os artífices chineses de uma lasca de jade a imagem de Shu-Lao, o Deus da Longevidade: macróbio embalado um recém-nascido, sob um galo de pessegueiro em flor...; ou de um prisma de cristal-de-rocha, a silhueta de Kuan-Yin, que é a compaixão e a Caridade, sentado, de olhos baixos e mãos ocultas sob um planejamento hierático...

Ora, isso é Sabedoria. Eis que isso Brecheret se pilhou fazendo, intuitivamente, com suas pedras: grandes pedregulhos-rolados que o mar lhe deu, com um mistério hieroglífico inscrito na sua matéria. Dir-se-iam formas lisas de Brancusi? - Não. Brancusi quis fazer pedras-roladas para significar coisas...


Essa terracota de forma lisa e escorregadia, como a de um seixo de beira de rio, apresenta arredondados, volumes essenciais, que ressaltam o corpo da criança e os braços da Mãe, na parte frontal da peça, em contraponto com o verso, que é totalmente liso. A escultura recebe em sua superfície o linearismo fantasista de incisões geométricas abstratas e em forma de animais, esquematizados: tatu e lagarto na frente e, no verso, o veado campeiro.

A posição da cabeça da mulher é voltada para o lado esquerdo, enquanto carrega à frente o filho. Percebem-se reminiscências de suas virgens com o menino da década de 1920. Nessa peça há o ritmo plástico da passagem do relevo para incisão, do volume para a reentrância, elementos que dão força e movimento ao bloco denso.

DP

 


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